Resenha por: Carlos Elias 28/12/2020
Review por: Pablo Cruz Vieira 25/05/2024
Pílulas Azuis (de Frederik Peeters)
Nós, amantes da nona arte, de tempos em tempos somos rotulados de leitores de hqs de “super-heróis” e/ou quadrinhos infantis. Somos colocados numa caixa com parcas alternativas e classificados. Porém, aos leigos que não conhecem este vasto mundo (e deveriam conhecer), saibam que existem muitos outros “tipos” de quadrinhos. Como qualquer tipo de arte, é preciso alargar o campo, explorar novas temáticas e diversificar os gêneros. Um dos grandes feitos do excepcional artista Will Eisner foi a criação de um novo termo e de uma nova forma de fazer gibis: a Graphic Novel (ou em bom português: o Romance Gráfico), termo sofisticado e legal para uma maior possibilidade de temáticas e vozes.
Graphic Novels podem tratar de vários temas desde as tradicionais histórias de super-heróis até assuntos banais do cotidiano. Mas aqui falaremos sobre uma importante vertente: a história autobiográfica. Desde o lançamento em 1978 de Um Contrato com Deus (a Graphic Novel pioneira de Will Eisner), temos o prazer de ler lindas (tristes e alegres) histórias humanas, a saber: Maus, Persepólis, Fun Home, Gen – Pés Descalços (um mangá que pode ser claramente classificado como uma Graphic Novel), só para citar algumas de um vasto universo.
Isso tudo acima citado servindo como um preâmbulo didático para introduzir o assunto deste review: a HQ Pílulas Azuis que, facilmente, pode ser classificada como uma Graphic Novel Autobiográfica pois conta uma parte importante da vida de seu autor Frederik Peeters. Um quadrinista suíço que sentia a necessidade de contar uma bela história de amor, sua história de amor com sua esposa Cati. Seria apenas mais uma romântica/dramática/alegre/humana história de amor, até mesmo, um amor banal se não fosse por um detalhe: quando Peeters começou a namorar Cati, ela e seu filho (fruto de um relacionamento anterior) já eram portadores do vírus HIV.
Um detalhe, à princípio insignificante, me chamou a atenção. Peeters e eu somos da mesma geração (nascemos em 1974). Mas o que isso tem haver? Na verdade, tem muito a ver. Pude me conectar com aquele artista e senti, pelo menos, uma ínfima parte do que ele estava sentindo no começo daquele relacionamento. Consegui ter um sentimento de empatia naquele turbilhão de emoções que o desenhista estava passando já que, por ser da geração X, era uma pré-adolescente quando a AIDS publicamente surgiu. Vi artistas famosos (Rock Hudson, Cazuza, Fred Mercury, Renato Russo) que tiveram AIDS morrerem com um estigma preconceituoso e cruel de morrerem vítimas de seus “pecados carnais”. Naqueles tempos, a pessoa que contraia a AIDS tinha 2 mortes simbólicas: uma morte fulminante da sociedade que a condenava ao ostracismo (uma morte em vida alimentada pelo preconceito) e uma espécie de morte (agonia psicológica) do soro-positivo, sem citar obviamente a própria morte (rápida e cruel) do doente, já que naqueles tempos não tinham sido desenvolvidos remédios eficientes para combater essa enfermidade. Eram tempos sombrios no que tange esse tema. Não tive a mesma experiência de Peeters mas, certamente, nossa geração foi a primeira que vivia esse dilema. Nossa vida sexual deveria e teria que ser mudada por causa de um vírus mortífero. Teríamos que usar, obrigatoriamente, camisinha de Vênus para parceiros(as) que não conhecíamos sua vida sexual pregressa e, mesmo conhecendo, sempre haveria uma nuvem de dúvida no ar. Vale salientar também que, mesmo com a mortalidade cruel do vírus, existiam o número massivo de pessoas que: ou não queriam acreditar em algo óbvio ou queriam brincar com o destino, não se protegendo, e jogando uma espécie de doentia roleta-russa só para satisfazer os prazeres da carne.
Enfim, a história dessa Graphic Novel começa nos anos 90 mas continua sendo atual (apesar de ter surgido inúmeros remédios que prolongam, melhoram e muito a qualidade de vida do soro-positivo, o estigma continua).
Tudo na história está permeada de um sentimento humano genuíno. Uma história de amor sem idealismo e clichês românticos. Tudo cheira humanidade. Do começo de encontros e desencontros de um relacionamento fadado ao fracasso, da descoberta da doença de Cati e de seu filho, da dúvida sobre como se relacionar com uma soro-positiva, do receio do amor se tornar apenas uma sentimento de piedade, do convívio diário com o vírus, da penumbra constante da mortalidade, do sentimento de culpa de Cati por ter sido responsável pelo destino de seu filho. Resumindo, o vírus HIV potencializa os diversos dilemas que nós, seres humanos, temos que conviver no decorrer de nossas vidas.
Frederik Peeters teve e tem uma vida de escolhas: se curvar ao estigma, ao preconceito, a efemeridade da vida ou viver uma história de amor cheia de desafios, erros e acertos, viver uma história humana, demasiadamente humana. Parabéns ao artista e, sobretudo, ao ser humano Peeters que escolheu e escolhe viver essa história e a sua decisão de contá-la através dessa linda Graphic Novel. A obra catártica é didática e emocionante. Didática porque mostra que uma doença não define quem nós somos e emocionante porque, sem clichês, o amor está acima de tudo. Leitura imprescindível!