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Review por: Jorge Jr.                                                                         15/06/2020

O RELATÓRIO DE BRODECK

O Relatório de Brodeck é um romance do francês Philippe Claudel que foi adaptado para os quadrinhos por Manu Larcenet que faz o roteiro e a arte. O livro ainda não foi traduzido para o português, mas o quadrinho é trazido para o Brasil pela seleta editora Pipoca e Nanquim.

 

Vamos à história; Brodeck vive numa pequena vila, provavelmente perto da fronteira entre a Alemanha e a França, ele é responsável por fazer relatórios sobre as condições das florestas, dos animais, dos rios e estradas para informar algum superior administrativo e por já ocupar de certa forma um cargo de escriba, foi Brodeck o escolhido para escrever a história e tentar explicar o incompreensível, justificar o pecado que os homens da vila acabaram de cometer.  “Nada deve ser mudado, tudo deve ser contado... É preciso que aqueles que lerem o seu relatório compreendam e perdoem”, eles precisam do perdão dos homens, não foi só um pecado, mas também um crime, o pior deles, a vítima era um forasteiro, um andarilho.

 

Mas qual seria o contexto desse crime? A pequena vila ficou isolada geográfica, política e culturalmente por um longo período, também carrega lembranças recentes de guerras, de forma sutil o roteiro nos dá pistas que há poucos meses acabara a segunda guerra mundial e que eles foram temporariamente dominados e controlados pelos nazistas.  Nessa ocasião foi o próprio Brodeck o bode expiatório dos pecados da vila, por ser também um estrangeiro que chegara ainda garoto, órfão pelo que nos parece ter sido a primeira grande guerra.

 

Brodeck foi entregue aos nazistas pelos líderes da vila como prova de boa vontade com a “purificação” sugerida pelos novos senhores e assim dar-se continuidade ao adestramento para um pensamento que parece senso comum, o de que o estranho é perigoso e deve ser eliminado. Perigosas são as ideias que conquistam adeptos pela força dos números, ameaçando com o temor do isolamento, muitas vezes identificado com a miséria e a loucura, os que não aderirem.*1

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Há muito tempo eu fugia da multidão, porque tudo veio dela...Podemos nos tranquilizar dizendo que a culpa é daqueles que a incitam. Errado. Não existe multidão feliz ou pacífica. Eu vi o que os homens fazem quanto têm a certeza de não estarem sós...”

 

É tentador esquecer os males que uma administração pragmática, natural entre os militares pode provocar numa sociedade, a falta de um propósito é um dos piores. O isolamento geográfico, político e cultural com lampejos de doutrinação que a vila sofreu explica a falta de propósito dos cidadãos, vivem apenas com o objetivo de fugir da dor, valorizam apenas o que é útil. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Se vocês tivessem vivido a guerra e o que ela fez por aqui, seriam como nós. Procurariam viver da forma menos dolorosa possível. É a natureza humana.”

 

Segue um trecho do diálogo entre o prefeito da vila e Brodeck sobre porcos, mas se encaixa perfeitamente na descrição dos habitantes da vila:

“Não se iluda, Brodeck...eles são verdadeiras feras. Sem coração sem alma, sem memória. Eles poderiam engolir os seus próprios irmãos, dilacerar sua própria carne, que isso não os incomodaria...Mastigam, engolem, cagam indefinidamente e nunca estão satisfeitos. Eles não pensam...Não conhecem nem remorsos nem o passado...Contentam-se em viver...Não acha que são eles que têm razão?”

 

Brodeck se lembra das humilhações que se submeteu no campo de concentração em troca de mais um dia de vida e das críticas que sofria dos seus companheiros de cárcere, hoje todos mortos, por isso Brodeck entende a lógica na pergunta do prefeito, a diferença é que Brodeck tinha um propósito maior que a autopreservação, ele aguentou tantas humilhações com a esperança de rever a sua família. Talvez uma vida sem propósito possa ser tão angustiante quanto os traumas de uma guerra e entres os sobreviventes do holocausto, há quem diga que a principal causa da sobrevivência era a existência de um propósito além da própria sobrevivência*2. Essa obsessão apenas pelo que é útil nos priva do que é mais importante para entendermos o sentido da vida, necessidades humanas que burocratas esquecem por serem completamente inúteis, enfim qual é a utilidade da beleza? A beleza é um valor maior que a utilidade, se formos honestos devemos admitir que para vivermos são necessárias muito mais coisas inúteis do que coisas úteis, para que servem o amor, a amizade, a devoção...?*3

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Tudo que pertence ao ontem pertence à morte. O que importa é viver. Você sabe bem disso, voltou de onde ninguém volta.”

 

E é nesse contexto que poucos meses depois do fim da guerra, chega à cidade uma entidade que personifica o estranho, o diferente, o estrangeiro. Ao chegar à cidade, o andarilho teve a audácia de lembrar aos homens da vila que diferente dos animais, temos propósitos mais dignos do que simplesmente garantir nossas funções fisiológicas, o simples afago do estrangeiro em seus animais lhes parecia algo obsceno, há muito tempo os animais da vila tiveram um fim mais útil do que o de pets, o mesmo que um boi milagreiro tem para um sertanejo quando deixa de fazer milagres*4.

Pouco ou quase nada se sabia sobre o andarilho, apesar de alegre, gentil e educado, ele quase nunca falava, era muito reservado e seguia uma rotina discreta mesmo que sua aparência física não o fosse, suas roupas estampadas, chapéu enfeitado e até mesmo uma tatuagem na cabeça o diferenciava bastante do resto dos aldeões, o seu nome não foi conhecido nem quando a vila organizou uma cerimônia de boas vindas e a única palavra que se ouviu do estrangeiro foi um constrangedor e enigmático “obrigado”. A aura de mistério contribuía para fomentar o medo, preconceitos e ressentimentos dos homes da vila e incentivava uma interpretação folclórica e supersticiosa de símbolos que nem mesmo existiam, ou se existiam eram ignorantes sobre o seus significados, preenchiam as lacunas invisíveis projetando no estrangeiro suas próprias falhas de caráter e pobreza espiritual.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Desenhando cordeiros? O que será que significa?” “Talvez tudo que ele desenha seja assim, que nem na Bíblia, símbolos e tal... talvez seja uma forma secreta de falar quem a gente é, pra poder contar lá no lugar de onde ele vem...”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Você viu?” “Bem na cruz, ainda por cima!” “se eu não conseguir removê-la, pode ter certeza de que os imbecis e os beatos verão nela um símbolo!”.

 

O andarilho não parece ser só de outra região e de outra cultura, mas também de outra época, nas poucas imagens que temos de seu quarto, vemos um pequeno museu; uma pintura de Caravaggio, outra do Pissarro, de uma época em que a beleza não era apenas um juízo estético supostamente imposto por uma classe dominante; um calendário asteca, alguns textos de astronomia persa de uma época quando astrologia e astronomia eram a mesma coisa; ilustrações naturalistas que se feitas hoje, não saberíamos se por um biólogo ou por um artista. Até o Brodeck, que narra a história em primeira pessoa, tem dificuldade em atestar a ocupação do andarilho, ele parece um artista renascentista, um filósofo natural de uma época em que não era necessário diploma para ser um. Leonardo da Vince era artista ou cientista? Newton era mais alquimista ou cientista? Copérnico foi tão esotérico quanto Jorge Bem Jor quando citou Hermes Trismegisto.*5 Talvez hoje mais do que nunca, tenhamos o maior exército de justiceiros voluntários que vigiam com um copo de cicuta na mão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Você também veio para tirar a medida do mundo?”

 

O andarilho quis retribuir a suposta hospitalidade da aldeia como só um artista poderia, a arte consegue tornar visível uma realidade que não se pode ou não se quer ver, a arte desnuda a alma. O forasteiro teve o atrevimento de mostrar aos aldeões as suas personas desnudas, sem mascaras, mais eficiente do que mil palavras, os retratos pintados pelo andarilho ofenderam e indignaram a todos porque ele conseguiu ver e mostrar a verdade, uma que não poderia ser mostrada de outra forma.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Diálogo entre Brodeck e o padre:

 

“Não podia terminar de outra forma, Brodeck...aquele homem era um espelho... ele confrontava cada um com a realidade da sua imagem... Para alguns, era insuportável se verem assim, nus e vergonhosamente reais, aos olhos de um estrangeiro... às vezes, é preferível quebrar o espelho.”

 

O povo da aldeia é um povo sem memória, sem cultura e sem a Influência humanizante da tradição, sem arte ou uma representação trágica que leve à catarse e purifique suas almas e pacifique a insanidade.*6 A única válvula de escape é um sacrifício real, a horda se reúne voluntariamente muito mais rápido e eficientemente quando para linchar um bode expiatório do que quando precisam seguir um líder legítimo, o prefeito e o padre da aldeia demonstram que já desistiram dessa disputa e apenas acompanham o desejo da massa. Nada une e traz mais paz a uma comunidade do que um assassinato coletivo *7.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Diálogo entre Brodeck e o prefeito:

 

“Eu sou o pastor, Brodeck. O rebanho conta comigo para manter os perigos afastados... e, de todos os perigos, a memória é um dos mais terríveis... você sabe... você, que se recorda tão detalhadamente de tudo... você, que se recorda demais.”

 

O andarilho apenas queria descobrir como são as pessoas que vivem longe de tudo e para sua infelicidade descobriu que elas são tão ou mais cruéis e egoístas do que quaisquer outras em qualquer lugar.

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Obras recomendadas:

 

*1  De Carvalho, Olavo (1996). O Imbecil Coletivo.

*2 FRANKL, Viktor , (1946). O Homem em Busca de um Sentido.

*3 SCRUTON, Roger, (2014). Por que a Beleza Importa?

*4 GUERRA, Ruy, (1964). Os Fuzis.

*5 COPERNICO, Nicolau. (1543). Das Revoluções das Esferas Celestes.

*6 ARISTÓTELES. (335 a.C.). A Poética.

*7 GIRARD, René. (2004). O Bode Expiatório

ORWELL, George. (1949). 1984.

WHITE, Michael. (1997). Isaac Newton, O Último Feiticeiro.

Galeria de referencias de imagens
01

São Jerônimo Escrevendo – Caravaggio, 1605.

02

A rua de Hermitage, Pontoise – Camille Pissarro, 1874

03

Calendário Asteca

04

Astronomia Árabe

05

Memórias sobre Astronomia de Nasir al-Din al-Tusi (1201-1274)

06

Compêndio de Astronomia (O Mulahhas), de al-Jighmini (século XIV)

07
08

Proporções Anatômicas e Geométricas, Albrecht Durer (1471-1528)

09

Cânone grego

10

Anatomia per Uso et Intelligenza del Disegno, Bernardino Genga (1620-1690)

11

Gladiador Borghese, 100 aC, autor desconhecido

12

Máscara da tribo Dan da Libéria

13

Deus dos mortos astecas, Lorde do Submundo Mictlantecuhtli_anagoria

14

Gustave Boyer em um chapéu de palha - Paul Cezanne

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