Resenha por: Carlos Elias 28/12/2020
Review por: Pablo Cruz Vieira 06/07/2020
Não Era Você que Eu Esperava(de Fabien Toulmé)
Gostaria de começar o artigo relembrando como os Graphic Novels (Romances Gráficos) têm evoluído e ajudado as HQs (Revistas em Quadrinhos) a atingirem um outro nível. Desde Will Eisner, responsável pelo criação do termo e pelo lançamento da primeira Graphic Novel até a atualidade, o que vimos é HQs não sendo apenas divididas entre personagens infantis e super-heróis. Vemos o universo expandir. Existem HQs sobre todos e tudo, de diversas nacionalidades e temáticas.
Definitivamente, HQs não são apenas destinadas para o público infantil.
Depois dessa introdução um pouco longa mas necessária, vamos ao objeto da crítica. “Não Era Você que Eu Esperava” do artista francês Fabien Toulmé é um exemplo dessa clara expansão de temáticas abordadas pelos novos Romances Gráficos. Toulmé é um engenheiro que desde sempre sonhava ser um quadrinhista. Depois de anos, decide se dedicar a sua paixão pelas HQs, talvez influenciado por sua família, ou desmotivado pelo trabalho que não mais o preenche, ou por ambas razões, ele cria um pequeno tesouro editorial. Artista nato, ele decide narrar as emoções geradas pelo nascimento de sua segunda filha, Júlia. Porém, o que o motivou dedicar um romance gráfico todo a segunda filha e não a primeira, ou a esposa, ou a sua relação com outros países? O motivo é muito simples: pai de segunda viagem, Toulmé descobre que Júlia será um motivo de grande alegria, porém, ao mesmo tempo, de verdadeira apreensão também. Júlia é portadora de trissomia 21 ou, em outras palavras, portadora da popular síndrome de Down.
Basicamente, a revista (ou HQs ou Graphic Novel, conforme você queira chamá-la) é um relato autobiográfico sincero de um pai vivenciando as várias etapas de ter uma filha com síndrome de Down. Toulmé, o pai artista, não se poupa, não cria estereótipos para suavizar suas crenças e posições, não está interessado em criar uma cartilha sobre como é criar uma filha portadora da trissomia 21. Talvez, isso fortaleça a narrativa e a transforma numa obra de arte que relata, honestamente, sentimentos humanos, ora bons, ora perturbadores, ora imperfeitos, enfim, sentimentos oriundos de basicamente um ser humano.
Toulmé é casado com uma brasileira, Patrícia. O início do Romance Gráfico se passa no Brasil. Nos primeiros meses, a gravidez é acompanhada por médicos brasileiros que não identificam a trissomia, apesar de Toulmé deixar claro que no Brasil tal exame não é feito de forma aleatória. É preciso uma grande necessidade para um médico exigir tal medida. Nada que desabone o sistema brasileiro de saúde. Aliás, é importante deixar claro que o Brasil não é o foco aqui e, muito menos, a crítica ao nosso sistema de saúde. Após um período, Toulmé (um homem que adora morar em diferentes lugares/países) decide voltar para sua terra natal, França, em busca de um emprego e uma vida mais estável para criar sua primogênita e sua filha caçula (prestes a nascer).
Na França, acompanhamos a fase final da gravidez de Patrícia, a preocupação excessiva de um pai, a relação de um casal com origens diferentes que se ama até o evento chave que modifica a história: o nascimento de Júlia. À princípio, Júlia nasce com um problema cardíaco que estende seu internamento e adia sua chegada em casa. Nesse período, Toulmé, o pai, desconfia que sua filha caçula, além do problema cardíaco, apresenta outra condição. Um tempo depois, há a confirmação da trissomia 21 em Júlia. O mundo então do pai/artista desaba. De forma sincera, como uma espécie de expiação por tudo que está vivendo e sentindo, Toulmé expõe todos seus preconceitos, sentimentos de culpa, castigo, seu estado desolador por descobrir que tem uma filha considerada pela sociedade “deficiente”. O que fazer? O que sentir? Como criar uma filha assim? Qual seria seu futuro? E o de sua filha? Enfim, o artista não tenta minimizar seus sentimentos, transformá-lo num mártir que precisa passar por tudo aqui com a cabeça erguida. Pelo contrário, vemos uma cara normal, ignorante da situação recém-descoberta, não sabendo lidar (como a maior parte da população humana não sabe) com a diferença, com uma condição que é chamada por muitos de “doença”.
O começo, o processo de aceitar uma filha portadora da trissomia 21 se mostra difícil. O pai Toulmé demonstra insensibilidade com a filha. Uma espécie de negação para tentar se sentir melhor e não enfrentar a realidade que, para ele, se mostra extremamente adversa. Contudo, como todo processo, existem diversas fases. Depois de demonstrar falta de empatia com sua própria filha, ele vai descobrindo aos poucos, graças às atitudes e comportamento de sua filha mais velha Louise, de sua esposa Patrícia e da própria Júlia, que o portador da síndrome de Down é um ser humano normal que pode ter limites emocionais, cognitivos como qualquer outro ser humano. Limites em algumas áreas, plenitude em outras.
Gradualmente, Toulmé vai narrando a transformação de um ser humano falho que aprende a amar uma filha que o ensina pela sua existência. Antes, crítico e intolerante com pessoas portadoras da síndrome de Down, ele passa a ver o essencial, a perceber a miopia de toda uma sociedade direcionada para desprezar, ou de forma eufêmica, desconsiderar tais pessoas.
“Não Era Você que Eu Esperava”, além de ser um relato sincero de um artista experimentando diversos sentimentos ao ser confrontado com o diferente, é uma história que nos fará repensar como tratamos o que não é considerado “normal”, como tratamos pessoas portadoras de determinadas condições. Geralmente, elas são relegadas ao plano da indiferença por parte de grande parte da população. Esse romance gráfico, diferente de uma cartilha que nos direciona propositalmente a ter comportamentos aceitáveis pela sociedade, é um tratado sociológico, antropológico que nos direciona a ter comportamentos humanos que respeitam toda e qualquer pessoa, portadora ou não de determinada condição. No final, o que importa é amar e ser amado, a valorizar a troca de sentimentos, é amadurecer com a convivência com o outro/com a diferença. Por mais cliché que pareça, a citação aqui do escritor Antoine de Saint-Exupéry se faz imperativa: “O essencial é invisível aos olhos e só se pode ver com o coração”.