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Autocaricatura de Laerte.

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"O Rei estava vestido": charge premiada no Salão Internacional de Humor de Piracicaba em 1974.

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Capa do primeiro número da revista "Piratas do Tietê".

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Capa do primeiro número da revista "Striptiras".

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Desenho de Angeli para a revista "Los Três Amigos", gozando com a suposta homossexualidade do personagem Laertón.

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Uma outra ilustração da revista "Los Três Amigos", mostrando o personagem Laertón e sua mania de se vestir de mulher (desta vez desenhada pelo próprio Laerte).

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Hugo: personagem que Laerte escolheu para expressar seus centinetos e desejos.

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Tirinhas atuais de Laerte, mostrando um aspecto mais contemplativo e poético.

Resenha por: Carlos Elias                                                      27/08/2020

“Lá se foi o último macho da cidade!”

Há muito tempo, li uma das histórias mais engraçadas já escritas pelo cartunista Laerte Coutinho. A história em questão é “Langérie”, que conta a saga de Jorjão, um machão inveterado que ironicamente morre em um acidente de trânsito, vestido com a calcinha de renda de sua esposa, não porque ele gostasse de vestir calcinha, mas, por não ter achado nenhuma cueca no guarda-roupa e estar atrasado para o trabalho, terminou vestindo a primeira coisa que encontrou. Mas, ao sair de casa foi atropelado por um caminhão, e ao ser despido no necrotério, deu-se a desgraça. A fofoca correu de boca em boca difamando o Jorjão, que a essas alturas, em espirito, tentava sem sucesso explicar a situação, chegando a baixar em um centro espirita, onde foi escrachado pelos médiuns. O interessante é que ao conhecer mais profundamente a história do autor e sua longa luta para se reconhecer transgênero, comecei a perceber que talvez esse quadrinho fosse uma forma velada, ou até mesmo inconsciente de mostrar como as pessoas julgam as outras, pela simples forma de se vestir.

 

Na época em que esse quadrinho foi escrito (final dos anos 80 ou começo dos anos 90 não sei ao certo), Laerte ainda não havia se assumido transgênero, coisa que só veio acontecer em 2010.   Mas em algumas tirinhas e histórias em quadrinhos, Laerte dava indícios de que trilhava esse caminho muitas vezes sem ser percebido pelo cartunista, como ele mesmo conta em uma entrevista ao programa Roda Viva que aconteceu no ano de 2012. Laerte junto com Angeli e Glauco formam a “santíssima trindade” do cartunismo brasileiro (pelo menos para a minha geração). Laerte teve seu primeiro trabalho profissional publicado na revista Sibila em 1970, e nesta mesma década fundou junto com Luis Gê, a revista Balão. Trabalhou em diversos jornais de renome nacional e publicações sindicais, o que lhe fez ficar muito ligado aos movimentos de esquerda, influenciou suas charges politicas e lhe rendeu um prêmio em 1974 com a charge: “O Rei Está Vestido”.

 

Laerte tem no seu trabalho, uma característica que sempre me chamou muito a atenção: a capacidade de mudar sutilmente o seu traço e com isso criar o tom da historia que ele quer contar, hora com traços rápidos para expressar humor e simplicidade, hora com traços mais trabalhados, cheios de sombreados e detalhes para compor um roteiro mais complexo. Assim como no desenho, Laerte consegue ter uma enorme fluidez em seus roteiros, às vezes com piadas bobas e quase infantis, que fazem você morrer de rir exatamente por serem bobas, às vezes com roteiros elaborados e filosóficos que fazem você rir e refletir ao mesmo tempo. Isso faz com que Laerte tenha na sua galeria de personagens, figuras como os Piratas do Tietê que é a personificação da anarquia. Ele nos mostra ao mesmo tempo, os personagens do “condomínio”: O Síndico, O Zelador, Os Gatinhos, Capitão Douglas, Don Luigi, Fagundes o Puxa-saco, dentre outros, cada um com suas características e peculiaridades, o que demostra a sua incrível capacidade criativa.

 

Essa característica nos seus roteiros fez com que Laerte fosse convidado a trabalhar escrevendo para programas de TV. Dois deles em especifico marcaram a minha infância e adolescência: a “TV Pirata” e a “TV Colosso”. Esse último, um programa infantil, o qual chegou a ter revista em quadrinhos com algumas tirinhas desenhadas por Laerte. Nos anos 80, Laerte publicava suas tirinhas e histórias em quadrinhos, nas revistas “Chiclete com Banana”, editada por Angeli, na revista “Geraldão”, editada por Glauco, e na revista “Circo” para a qual Laerte criou personagens exclusivos, que foram reutilizados depois nas tirinhas de “Suriá – A Garota do Circo”. Porém, com o sucesso dos seus personagens, ele terminou lançando sua própria revista, a “Piratas do Tietê” que mais tarde mudou o nome pra “Striptiras”. Infelizmente nenhuma dessas publicações existe hoje em dia, mas ainda podemos ter acesso a elas em compilados, coletâneas e reedições e às vezes, em publicações on-line.

 

Nesse mesmo período Laerte, Glauco e Angeli, lançaram a revista “Los Três Amigos”, que depois também contou com a participação do cartunista Adão. A revista que parodiava uma comédia norte-americana de mesmo nome era escrita e desenhada a seis mãos, e tinha como personagens os próprios cartunistas que não perdiam a oportunidade de sacanear uns aos outros, em suas hilárias aventuras. Muitas vezes, o alvo das sacanagens era a “estranha mania” de Laerte de se vestir de mulher de vez em quando. Nesse período, ele já se identificava como transformista (cross-dressing), mas ainda não havia se assumido como transgênero. Anos depois, em uma entrevista já citada anteriormente, Laerte foi perguntado por Angeli se ele se importava com as “brincadeiras” que eram feitas por ele e por Glauco naquela época, ao que Laerte respondeu que não.

 

E aqui voltamos novamente ao assunto da sexualidade do cartunista Laerte. O titulo deste texto foi tirado de um dos balões da história “Langérie”, e foi escolhido ironicamente por mim para ilustrar o foco principal deste texto, as transformações pelas quais passou o grande cartunista Laerte. E aqui não estou falando só das transformações físicas ou sexuais, mas também, das transformações no seu modo de ver o mundo e seu trabalho.

 

Laerte é considerado por muitos, inclusive entre os próprios cartunistas, um dos melhores se não o melhor dentre eles, porém essa é uma visão da qual ele mesmo não concorda, não por modéstia, mas por não conseguir se identificar com o seu trabalho. Durante anos, enquanto ele lutava com os seus problemas de autoconhecimento sexual, Laerte usou muitas vezes o seu trabalho como meio de expressão, chegando a travestir o seu personagem Hugo e usa-lo como válvula de escape para seus desejos. À medida que Laerte foi mudando, o seus cartuns também mudaram, ele deixou a maioria dos personagens de lado e passou a criar tirinhas mais contemplativas, poéticas e com um nível de humor mais sutil. Esse tipo de trabalho já podia ser visto em algumas de suas histórias antigas, mas atualmente é o estilo que predomina em suas publicações.

 

Muitos fãs criticam essa nova fase do trabalho de Laerte e dizem preferir o estilo de humor mais escrachado e às vezes ácido que ele usava anteriormente, porém o próprio Laerte diz que o seu trabalho, assim como ele, estão passando por uma transformação que talvez nunca tenha um resultado definitivo. Atualmente, Laerte tem seus trabalhos publicados na Folha de São Paulo, também tem um filme, “A cidade dos Piratas”, lançado em 2019 , que é baseado em sua vida e obra, e um documentário, “Laerte-se” de 2017, que tem como foco as mudanças ocorridas na vida do cartunista, após a seu autorreconhecimento como transgênero.      

 

Para os leitores deste artigo fica a minha opinião: ler as tirinhas e quadrinhos de Laerte é uma forma genial de conhecer um pouco da história recente e da cultura brasileira, através do olhar crítico, bem humorado e às vezes contemplativo de um dos (ou uma das) mais incríveis cartunistas da atualidade e conhecer um pouco melhor a vida de Laerte me fez refletir sobre preconceitos que tenho guardado e que deveriam ser jogados fora!

 

Referências:

Laerte Coutinho – Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Laerte_Coutinho

Documentário (Netflix) “Laerte-se”: https://www.youtube.com/watch?v=eKHqtmd1_xg

Roda Viva - entrevista com Laerte: https://www.youtube.com/watch?v=j5hXQDThUiA

Cenário HQ – Laerte: https://www.youtube.com/watch?v=eKHqtmd1_xg

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